sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O tempo circular no ciclo feminino (ou o ciclo feminino no tempo circular)

Era uma vez Talita Hernandes que, com Álvaro Duque, teve um (talvez alguns) final de noite feliz regado a muita salsa.
Certo dia, Álvaro conheceu Manuela Oliveira e então ela teve muitos finais de noite e começos de manhã felizes ao lado dele.
Houve um tempo em que as noites e as manhãs custavam a passar, Álvaro andava esquisito, dividido... O entardecer de Manuela começou a esfriar e os primeiros raios de sol do dia demoravam para aparecer, o tempo estava nublado, ela pressentia que o inverno logo chegaria. Tinha razão, a temporada de manhãs cinzentas e noites geladas se anunciava. Entretanto, nesses mesmos tempos, do outro lado da cidade, para Lara Bispo, as noites eram quentes e as manhãs ensolaradas.
Manuela não mais almejava manhãs ensolaradas e noites quentes, queria apenas períodos de calmaria, clima tênue, primavera florescendo a amizade... Mas Álvaro era casca dura, 8-80 e a deixou no inverno. Contudo, em um dia qualquer dessa estação ingrata e fria, de repente, não mais que de repente, ela sentiu aquela brisa quente que veio lá do noroeste e a assoprava delicadamente. Manuela ponderava: “Será o verão chegando? Não pode ser! É uma viração momentânea!” Abril, maio, junho... os meses foram passando e aquele vento leve e delicado se transformou em um mormaço, um calorão daqueles que deixa qualquer um molhado e sem fôlego! Novamente, Manu vivia noites calientes de verão ao lado de Javier Gonzalez. Julho chegou e o mar a chamou. Antes de partir, no fundo dos olhos dele, viu uma paisagem: árvores carecas, folhas secas, chão cheio. Ela sabia, o outono se anunciava. Ainda assim, escolheu não impedir, precisava partir. O mar gritava por ela, o corpo dela gritava pelo mar. Manuela, magneticamente, foi a procura do imenso azul tal como o sul vai a procura do norte. Ela precisava, numa onda foi embora. Com Manu em alto mar, Javier conheceu Talita e então passaram a ter noites dançantes e felizes de verão em pleno mês de julho!
De forma inesperada, naquela cidade estranha, de estações esquisitas que coexistiam e se excluíam, a brisa, o vento, o mormaço, tudo parou... Mas logo, o período da vez se definia! Javier retornou à pátria, deixara Talita no inverno. Manu, noutra onda voltou e já não entendia mais o clima da cidade... tudo tão alheio, tempo incerto. Pensara: “Essa sensação de ponto de interrogação não há de ser nada além de um choque térmico.” Foi quando Javier, mesmo longe, soprou uma brisa leve, tênue, agradável e esclarecedora transformando a interrogação em exclamação. E agora em outubro, Javier e Manuela vivem a primavera, a amizade floresce e aquela brisa que ele sopra lá de longe, sempre tão aconchegante, prediz que em janeiro será verão, mas desta vez a brisa soprará na direção oposta e a sensação será de reticências.

sábado, 4 de outubro de 2008

Da ciclotimia feminina




Ex-cesso e ela cessa
hora acesa, minuto apagada
enaltece, anoitece
alegres epifonemas, tristes epitáfios
enriquece, esquece
não in-cubus
sim em círculos.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Relato de uma experiência africana


Amir Klink está coberto de razão quando diz que "um homem precisa viajar". Antes de chegar a Gana, na África, eu me enganei por conta dessa "arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos e simplesmente ir ver”. O país é como sua típica pimenta de kebab: picante, mas doce. O povo é muito acolhedor, todos me tratavam bem e queriam conversar, saber como era minha vida no Brasil, saber como eu me sentia em Gana e o que eu estava achando de tudo. Queriam sempre agradar... Até festa de aniversário e presentes eu ganhei por lá! Quando saía à rua, parecia alguém famoso... As crianças vinham atrás e gritavam “broni” (branca, em twi). Queriam brincar, conversar, saber se eu estava bem. As mulheres me olhavam como se eu fosse surreal e, em seguida, percebendo a minha receptividade, vinham me tocar como se tentassem confirmar que eu, de fato, era real. E logo me enchiam de perguntas. É verdade que nem tudo são flores e alguns ganenses olhavam desconfiados (e muitas vezes até broncos) para mim porque eu era "broni". Entretanto, bastava eu dizer que era brasileira que tudo mudava e eles queriam conversar sobre futebol.
Andando pelas ruas da cidade e conversando com as pessoas locais, percebe-se que há dois extremos, com diferença gritante: os pobres são muito pobres, e os ricos, muito ricos. E a classe média? Tem o mesmo padrão de vida daqueles que consideramos pobres por aqui. É lindo perceber que a maioria dos desfavorecidos, apesar de toda sua pobreza, são alegres, esperançosos e muito amigáveis. Sim, para mim ficou claro que se precisa de pouco para ser feliz. Os estudantes de medicina (os ricos com quem tive contato), apesar de todo o dinheiro, levam uma vida simples - todos, sem exceção, moram na moradia estudantil (com estudantes de classe média também) e a grande maioria lava, passa, cozinha e limpa, sem distinção de gênero ou classe social. Vocês imaginam um estudante de alta renda fazendo isso no Brasil diariamente?
Gana comemorou cinqüenta anos de independência no ano passado. O país ainda dá os primeiros passos, a economia é fraca e seu principal produto de exportação é o cacau. As cidades grandes (a maior que é a capital Accra tem 2milhoes de habitantes) estão em franco crescimento acelerado e desorganizado: favelas, escassez de água, saneamento básico precário, lixo depositado em locais totalmente inadequados ou queimado, calçadas em construção apenas nas vias principais (asfalto também), trânsito caótico, sem semáforo, sem preferência e com longos emaranhados de carro tentando passar e ecoando buzinadas cidade adentro. Aliás, o país tem uma enorme frota de táxis (Renauts, Ômegas, Ipanemas sucateados). Pegar um táxi é barato (cerca de 2 dólares para andar bastante). O sistema público de transporte municipal é terrível - quase não há ônibus. O Estado terceiriza o serviço, então o que temos são inúmeros perueiros com vans extremamente velhas e em péssimas condições, popularmente conhecidas por "tro-trós" porque você paga com um tró (uma moeda de baixo valor) e ainda recebe de troco outro "tró". De fato, um dólar é suficiente para seis pessoas fazerem um trajeto!
O curioso é que, apesar de eles terem entre 45-60 dialetos tribais e inúmeras tribos dentro de um mesmo território, todos se sentem parte de um único todo "one nation, one people" (logo que o governo lançou para comemorar os cinqüenta anos de independência de Gana) e é por conta disso que o país é bastante pacífico e tem fama de ser o mais amigável, de todo o continente, para receber pessoas. Acho até que, em partes, o responsável por esse nacionalismo foi Kwame Nkrumah (o primeiro presidente de Gana, que era “a la Simon Bolivar”.) O desejo de uma África unificada ainda perpetua na mente de jovens ganenses que também sonham com um mundo igualitário.
Em janeiro, Gana sediou a "Africa Cup of Nations", e uma pitada adicional de nacionalismo tomou conta do país que se pintou de vermelho, amarelo, verde e preto (as cores da bandeira) para apoiar o "Black Stars" (seleção nacional de futebol). E eu tive uma dose extra de contato com o continente, afinal "a África" foi à Gana.
Ao contrário do que se imagina, a maior parte da população é cristã. Na verdade, é uma mistureira brava, como por aqui. As pessoas freqüentam a igreja (há mais metodistas e protestantes do que católicos), mas não deixam de ir ao curandeiro tomar um chazinho e fazer um banho de erva, quando têm algum problema. (para os médicos, por causa disso, há muita síndrome de Stevens-Johnson). E, como eles são muito religiosos (missas, preces em grupo, encontros da igreja ocupam suas agendas mais do que uma vez na semana), não tem essa história de "ficar" e, mesmo quando namoram, não tem nem beijo em público. Não sei se por questão religiosa ou cultural (ou ambas), a maioria das pessoas não ingere bebidas alcoólicas (nem mesmo socialmente).
A comida é muito picante (mais do que a mexicana!) e há uma boa variedade (carboidratos, proteínas, frutas, legumes e verduras). Para o nosso bolso, não é cara (1,2dólares um prato grande, no almoço). Os pratos tradicionais são degustados com a mão, e tem que ser com a direita! Imaginem como sofri e o quanto as pessoas riram de mim tentando comer (sou canhota). Eles ainda acham que os canhotos são "sinistros" e vêem como ofensa quem come, gesticula e cumprimenta com a mão esquerda. Faz pouco tempo que eles permitiram que os alunos escrevessem com a esquerda (ainda bem que isso eu podia fazer!).
Falando de saúde, ou melhor, de falta de, o hospital de Kumasi (onde estagiei) é enorme (tem aproximadamente a área do HC de São Paulo). Apesar do tamanho, a infra-estrutura é precária: prédio sucateado, falta de equipamentos, poucos exames complementares disponíveis, grandes salões com inúmeras camas uma do lado da outra (como nos filmes) e pacientes também em colchões no chão amontoados, inclusive nos corredores. Acredito que, para exercer a medicina nessas condições, é preciso ter virtude e amor pela profissão. Improviso e boa propedêutica são as palavras que devem estar no pensamento e na ação. Lá eu encontrei excelentes profissionais - sabem conversar com o paciente, fazer uma boa história, um exame físico impecável e na maior parte dos casos, fechar o diagnóstico com isso (já que exames laboratoriais não estão sempre disponíveis). Para quem não é da área da saúde, o que acontece é que os profissionais da nossa área em países desenvolvidos e "em desenvolvimento" têm subvertido a ordem de história do paciente, exame físico e exames laboratoriais - muitas vezes mal conversam com o paciente, fazem um exame físico precário e pedem uma centena de exames de sangue, urina, radiografia e outros, muitas vezes desnecessários, se o médico conversasse direito e examinasse bem o paciente. Sempre que se faz isso, além de degradar a relação médico-paciente, o risco de erro é maior.
Sim, apesar de toda a pobreza, da precariedade do serviço de saúde, do quão desumano parece à primeira impressão ver aqueles pacientes todos sem privacidade e muitos no chão, o cuidado médico é bem humanizado. É uma vergonha para o nosso país, mas, nesse quesito, eles estão léguas à nossa frente. Mais vergonhoso é saber que isso é uma questão de postura pessoal, mas que tem se perdido, proporcionalmente ao advento de tecnologias. Os médicos e estudantes de medicina ficam deslumbrados (ou acomodados) com o arsenal de exames e aparelhos que podem solicitar para curar a doença e esquecem que a “D. Maria” é muito mais do que uma paciente de sessenta e três anos diabética, hipertensa, menopausada, com um episódio de AVC. Enquanto tratarmos a doença e não a falta de saúde (que são coisas diferentes), o serviço prestado não será efetivo e as filas do SUS e outras só vão aumentar. Afinal, “que pobreza tem essa medicina dos ricos, incapaz de abordar a riqueza multifacetada da vida dos pobres”?
O cuidado que eles têm com os pacientes é inversamente proporcional ao cuidado com aqueles que morreram. Dois funcionários passam pelos blocos do hospital com uma maca fechada recolhendo os mortos e vão amontoando um em cima do outro, como entulhos. No serviço de patologia, a fila para autópsia é enorme. E todos os dias eles fazem várias. Os corpos que serão autopsiados no dia são separados dos outros que aguardam (quem morre hoje é necropsiado daqui a 10 dias) e então amontoados no chão. Para autopsiar, eles solicitam o corpo pelo código (um número qualquer) e um funcionário vem arrastando do chão, batendo, e joga-o na mesa. A primeira visão é chocante, depois acho que ocorre um processo de insensibilização. Lá eu aprendi que muitas vezes quando estamos sensíveis a uma causa, é preciso nos insensibilizarmos para conseguir executar o que precisa ser feito e isso não é contraditório. Penso ser provável esse desleixo e materialidade com que tratam seus cadáveres pelo fato de eles saberem que um cadáver é apenas “carne dada aos vermes”, e aquilo que a pessoa tem de importante já não habita mais aquele corpo. Bom, pelo menos é reconfortante achar isso e foi o que me deu forças para prosseguir o trabalho.
Após jornada de dois meses em mundos completamente diferentes e pensando também sobre todos os outros lugares em que estive, me sinto fora da curva de Gauss. A teoria darwiniana não se aplica a mim. No meu caso, creio que Lamarck tenha razão, sim eu me adapto conforme a necessidade, sou capaz de viver em qualquer lugar. Ou seria um neodarwinismo? Talvez eu tenha um gene mutante que faz com que corpo e mente se reprogramem para um novo hábitat. Pode parecer paradoxal, mas o que me prende a esse mundo não são as coisas mundanas. Estou aqui em busca de algo... Amor? Solidariedade? Paz? Compaixão? Felicidade? Harmonia? Poderia ser qualquer uma dessas coisas ou todas elas. Mas não é, procuro algo maior, não sei dizer o que (já que definir é limitar e estamos falando de algo sem limites). Só tenho a certeza de que, a cada dia, encontro um pouquinho “disso” nessa estrada mundo afora. E essa jornada foi muito especial, porque conheci pessoas que, como eu e muitos de vocês, são vaga-mundo e andam por aí procurando “o sentido”. Mas não se esqueçam de que, ao ampliar os horizontes, é preciso estreitar os caminhos, para dar conta da missão!