sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Expurgo d'alma?

Andara entediada, irritada, deprimida. Tudo incendiava... a cada hora, uma parte rubra. Na vã tentativa de apagar o incêndio, coçava dali, coçava daqui mais um pouquinho ali, outro pouco lá adiante e assim ia a noite inteira. Era desesperador. Pior, não sabia o porquê de tanta inquietação, de tanta insatisfação, de tanta vermelhidão, de tantas chamas que quanto mais coçava, mais se alastravam. Passara dias a fio nessa incessante guerra que ao chegar do sono se via vencida e assim deixava o sonho vir... dava uma trégua na esperança de que o amanhã possibilitaria um acordo de paz consigo mesma. E de fato, ao acordar não havia vestígios de que na noite passada queimara em pruridos disseminados. Todavia, quando o sol caía, era batata! Lá estava ela rubra, pruriginosa, cheia de pessimismo, vazia de auto-conhecimento. Sem água, pó químico ou qualquer outro instrumento capaz de lhe tirar dessa condição. Pior, sem sede, acomodada: "Amanhã eu vejo isso".
Uma dessas noites foi diferente. Mas apenas por um único detalhe: um tanque de guerra invadira a sua cabeça. Era uma dor avassaladora. Nunca fora chegada a alopatia e diferentemente das outras mulheres, não andava com remédios para dor de cabeça na bolsa. Mas neste dia olhou para a prateleira e viu uma dipirona reluzente. Na embalagem, mensagem envolta de luzes piscantes em neon: aqui está o remédio para todas as suas dores. Sim, aquela dipirona era o próprio emplasto Brás Cubas. Teve a certeza de que ao tomá-la tudo haveria de se resolver: a vermelhidão da pele, as coceiras, irritações, tédios, dúvidas, incertezas e principalmente a dor de cabeça que nessa noite estreava. "Ahhh mas esse tanque de guerra some em 2 quentes e 1 fervendo".
A cefaléia desaparecera após 1 hora, mas o incêndio pruriginoso não. E agora ela estava bicuda. Sim, literalmente bicuda. "Ahh não deve ser nada, amanhã quando acordar o bico desaparece". Mais 1 hora e o que era bico de pato se transformou em cara do Coringa. Sim, ela se tornou a versão feminina do Coringa. Não, ela não era psicopata... talvez estivesse sociopata. Mais meia hora e o Coringa ficou caolho. De fato, vivia dias de cão e sem nenhuma explicação. Como diria sua avó, o capeta estava atentado.
Resolvera seguir o conselho daquele anjo não tão convencional que hora lhe beliscava, hora lhe assoprava, aquele ser que ela convencionara chamar de amiga: caminhou até a portaria do prédio para esperar a amiga passar e levá-la ao PS. No trajeto, colocava a mão na boca tentando esconder o rosto desconfigurado, envergonhada de ter perdido a própria identidade e mais ainda de não ter desejado encontrá-la até então. Mas como adorava humor negro, disse à amiga:

- Eu sei que tá engraçado. Pode rir!
- Rir? Você tá maluca? Isso é de chorar. Doida! Como não foi pro PS antes?

e riram!

Quando chegaram, os internos de supetão deram o diagnóstico:

- Beijite aguda!

e riram todos!

Na manhã seguinte, agora apenas bicuda, procurou o consultório de uma competente imunologista. Diagnóstico? Urticária aguda e angioedema. Conduta? Imunossupressão. Voltou para casa. Logo, de forma súbita, travou toda a coluna. Que vergonha! Teve que chegar a esse ponto para fechar para balanço. Ainda bem que tinha o telefone de uma fada express que com mãos abençoadíssimas, destravou não só a coluna... como em um passe de mágica! Vivia um momento epifânico, era borboleta deixando o casulo. É, o fascinante dos filmes da disney ocorria ali diante de seu ser e se prestasse mais atenção enxergaria ao seu redor e se olhasse, além de ver, enxergaria também em lugares longinquos.
Em um jantar descontraído com a vizinha e confidente, compartilhara a experiência. A crítica amiga observou:

- Foi um expurgo d'alma.

O fato é que, paradoxalmente, após deprimir o corpo, a alma andava cantarolante - sustentava a insustentável leveza do ser. Teria sido um expurgo da alma? Preferira não entrar no mérito da questão... lembrando-se de Nietzche, escolhera a dúvida. Não queria a insanidade da certeza. Estava em paz.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Um pouco do povo da floresta




Frases, pensamentos, causos, sonhos, teorias e conselhos daqueles que muito me ensinaram e ensinarão: os ribeirinhos da Amazônia

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De Dna. Preta (benzedeira, senhoria cabocla, de carcaça frágil, cabelos compridos e brancos, tranças de meninota, voz doce e serena, espírito forte) quando fui conhecê-lá:

- Conhecer? Tu veio foi abelhudar!

e riu...

Ainda dela:

-Tu vai lembrar a vida inteira dessa velha que dizia: malarinha, virosinha e denguinha. Nunca se esqueça.

Segundo ela, malária, virose e dengue são a causa de todas as outras enfermidades do corpo.

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Dedo de prosa com o Sr. Neco:

- Sr. Neco, como vai?

-Vai mais ou menos dona...

-Mais ou menos por que Sr. Neco? Aconteceu alguma coisa?

-Não. É que quando vai mais ou menos é porque tá bom... quando tá ruim, vai ruim. A gente vai mais ou menos porque tem como melhorar e como piorar. Não é mesmo dona?

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Sr. Carlos, da organização comunitária de uma ONG que trabalha com populações ribeirinhas:

- A gente tem que entrar pela porta que a comunidade oferece.

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Sr. Sabino, 76 anos:

- Quando chega nossa hora é vontade de Deus e não tem jeito de mudar isso. O que não pode acontecer é um médico deixar de prestar socorro e de mandar fazer os exames que precisa porque ai tem gente que morre antes da hora.

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Sr. Raimundo, viajante vaga-Brasil:

- Camaradagem na cidade grande é cabeça baixa e dinheiro no bolso.

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Fabrício, 17 anos, cursa a 8ª série, menino inocente, puro. Diz que um dia fará odontologia. Sonha com a vida na terra da garoa. De noite gosta de observar as luzes dos garimpos no meio do Madeira que, de longe, lembram luzes de uma cidade.

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